Diálogos no Espelho
ㅡ Quem é você?
Silêncio. Exigir uma resposta do espelho era pedir demais. Todos esses anos se passaram sem oferecer muitas explicações. Os retornos sobre mim mesma não moravam no reflexo do meu próprio ser.
Meus dedos cegos escorregaram pela penteadeira em busca da velha escova de minha mãe. Decidi organizar os fios rebeldes das mechas mais longas, as quais nunca fui permitida cortar mais do que dois dedos, medida definida pela senhora dona do salão da esquina.
Enquanto penteava o cabelo, observava como cada fio se apegava à escova e naturalmente se desprendia do meu coro cabeludo. Aos poucos, percebi que minha pele escorregava vagarosa sobre meu rosto, como as cobras fazem. Estava tudo enrugado. E os cabelos, que ainda se prendiam à escova, eram grisalhos e brilhantes. O desespero estava engatilhado, pronto para me engolir.
ㅡ Quem é você? ㅡ Exigi novamente.
ㅡ Eu sou você, Maria.
Havia uma bola do tamanho de uma pinha entalada em minha garganta.
ㅡ Maria… por que está presa dentro do espelho?
ㅡ Eu não estou presa.
ㅡ Mas… se está aí e está falando comigo, está presa dentro do espelho.
ㅡ Estou?
Olhei as minhas mãos e percebi que elas ainda eram jovens, diferente da imagem enrugada que refletia no fundo dos meus olhos.
ㅡ Se não está presa no espelho, o que faz por aqui?
ㅡ Eu vim te visitar, Maria.
ㅡ Por que veio me visitar? Você não me conhece.
ㅡ Eu senti saudade de você. Queria verificar se estava tudo bem, se está vivendo bem e se cortou os cabelos, como sempre sonhamos em fazer.
ㅡ Como sabe do meu cabelo?
O reflexo no espelho revirou os olhos. Ela tinha total autonomia do que fazer, nem mais penteava os cabelos. Me observava. Apenas.
ㅡ Porque eu sou você.
ㅡ Como está aqui? É algum tipo de viagem no tempo?
ㅡ Sim.
ㅡ No futuro existe viagem no tempo?
ㅡ Não.
ㅡ Então como está aqui?
ㅡ Eu vasculhei o poço mais profundo de minhas lembranças e encontrei você sentada à penteadeira escovando os cabelos. Decidi parar e te observar.
ㅡ E ficou feliz com o que viu?
ㅡ Não.
ㅡ Por quê… Maria? ㅡ De alguma forma, doía fisicamente chamá-la pelo mesmo nome que o meu.
ㅡ Eu preciso que você mude para que eu não fique presa ao que sou hoje, mas é impossível.
ㅡ O que preciso mudar para te ajudar?
ㅡ Corte o cabelo! ㅡ Ela gritou agressiva. O gatilho do desespero estremeceu.
ㅡ Não posso.
ㅡ Por quê? ㅡ Era a primeira vez que ela se dirigia a mim com um questionamento.
ㅡ Porque minha mãe não deixa.
ㅡ Viu? Não dá…
ㅡ Eu posso fazer outra coisa… Maria.
ㅡ Então, tá! Foge de casa.
ㅡ Também não posso.
ㅡ Tudo bem… você gostaria de sugerir alguma coisa então?
ㅡ Eu posso… parar de ir à crisma aos finais de semana.
ㅡ Não é suficiente! Você já vai fazer isso de qualquer maneira. Vai largar a crisma, deixar de ser coroinha e, em seguida, não frequentará a missa aos domingos.
ㅡ Então por que está aqui se sabe que vou dizer não para tudo!?
ㅡ Acho que para matar a saudade de te ver assim… e de sonhar com o “e se…”.
ㅡ Você conseguiu matar a saudade?
ㅡ Não. Nunca é suficiente, Maria. Você está distante demais. No vale mais sombrio de minhas memórias. Coberta de inseguranças. Entupida de medos. Sempre catando as migalhas saudosas dos arrependimentos tardios.
Olhei minhas mãos e elas estavam completamente enrugadas. Os cabelos grisalhos cortados milimetricamente apenas dois dedos. Acionei o gatilho do desespero e me encontrei presa dentro da senhora no espelho.
Por Lorena Cardoso
A proposta é a seguinte: (i) ler um conto do Luiz Vilela (sugerimos o "Luz sob a Porta") e o conto de Jorge Luis Borges, chamado "O outro". (ii) Criar um personagem com base no mapa de personagem (ver próxima postagem), de forma a traçar características biográficas de adolescência e de fase adulta ( ou velhice) para o/a mesmo/a personagem; (iii) seguir o enredo proposto neste texto da Lorena: um diálogo entre essas 'duas' personagens.
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