Trago hoje para nossa conversa tão esperada alguns pontos que têm me inquietado como mãe, mas também como educadora e como ser social que busca viver ao invés de sobreviver neste mundo-existência, tão marcado por divisões, separações e violências, incluindo as simbólicas, as microviolências naturalizadas e sutis que insistem não desgrudar das nossas formas pensamentos diárias. São muitos os lugares de fala e (infelizmente), hoje, não posso me anunciar apenas no lugar de mãe, pois seria uma pretensão inalcançável. Imagina que eu fosse médica e que levasse meu filho para uma consulta; seria muito natural um diálogo se estabelecer entre colegas e meu lugar de fala já estaria entremeado do meu lugar profissional. Do ponto de vista sistêmico, não seria nenhum problema se essa troca fosse, de fato, baseada no diálogo e na construção e não assentada em julgamentos e avaliações. Quando se trata da escola, tudo fica mais complicado. Se eu me anuncio (mesmo que internamente) no meu lugar de educadora, já não sou bem vista e, muitas vezes, sou acusada de sair do meu lugar de mãe.
A questão que coloco é: por que mesmo estamos tratando das leis sistêmicas como se fossem peças que usamos porque nos caem bem em certas situações e não em outras? Por que não estamos associando um olhar histórico e geopolítico no seio da sociedade capitalista como a ontologia que se pretende questionar e não sobre a qual nos apegamos a funcionar. Vamos, em mais um exercício imaginativo, pensar que o diálogo que vou propor na escola de minha filha esteja no bojo do contexto de uma escola pública ou de uma escola associativa. Como essa conversa pode se encaminhar se me coloco no meu lugar de mãe-educadora, verdadeiramente interessada em contribuir, em compreender, em construir conjuntamente com a escola, sem arrogância, sem julgar o trabalho que ali se faz. Agora, imagina a mesma cena em uma escola particular. É possível? Sim, mas é mais complicado. E complicado é a palavra perfeita, pois em sua etimologia o ‘pl’ significa ‘com dobras’, algo que não é liso, que não é sem dobras, ou seja, que não é simples. E não é mesmo.
Falo isso porque é muito fácil observar que essas acusações de que estou saindo do lugar de mãe estão na medida da postura defensiva de quem não quer diálogo. Fui mãe em escolas associativas sem fins lucrativos por 13 anos. Sou professora de instituição pública há 25 anos e tenho três filhos em diferentes idades escolares que estudam também em diferentes escolas. Troco com muitas famílias sobre angústias e delícias em relação à educação de filhos/as. Sempre me chamou a atenção o incômodo provocado quando proponho o diálogo a partir desse entrelugar mãe e educadora, mesmo tendo consciência de que não estou na postura do julgamento e da separação. Enfim, essa reflexão, à guisa de introdução, é apenas para marcar meu lugar de corpo-encruzilhada. Estou aqui nesses lugares de fala entretecidos de histórias, posicionamentos e diferentes experiências que me atravessam; estou nessa encruzilhada chamada escola-maternidade-política-crise sanitária-mulher. E, ainda, poderia inserir muitos outros fios para tecer essa conversa prosa que pretendo ter hoje sobre como viver em tempo de crise nos mergulhos escolares. Perguntas que se desdobram em meu corpo casa, de mãe, que divide com o pai, a sustentação física, emocional, energética, mental e espiritual de 3 filhos para a travessia desse momento pandêmico no planeta. Perguntas que se apresentam no meu ser educadora (ainda conectada ao eros pedagógico) com meus 300 alunos no atual ano letivo.
Para tocar os pontos mais específicos, começo retomando uma preocupação que trouxe à baila em julho quando começamos a discutir sobre o retorno das aulas presenciais. Naquela ocasião, reclamava em meu texto-expressão para quem cairia bem esse retorno. Questionei a falta de clareza e de diálogo entre escolas, governo, famílias e destaquei meu medo (é essa palavra mesmo) de ser uma desinvenção da educação no modelo híbrido, como uma espécie de borracha que se passa nos últimos 60 anos de construção pedagógica para deixarmos a didática do ‘cuspe e giz’ (agora ‘cuspe e pincel de quadro branco’) apenas nos arquivos da nossa precária educação bancária (para usar um termo freiriano). Naquele momento, já pressentia as muitas camadas de mascaramento que recairiam sobre a escola, sem espaço para se saber o que os/as professores/as sentem (isso mesmo, como se sentem, o que sentem) e o que os/as estudantes sentem. Esse verbo foi excluído da nossa vida prática, por mais irônico que isso seja nesses tempos de crise; justamente uma crise na saúde física, como se ela estivesse dissociada da saúde mental e emocional (e eu nem mencionei a espiritual- vou deixar para outra ocasião).
Por que não perguntamos nas escolas como as pessoas estão se sentindo? Por que não temos espaço de escuta amorosa e de fala cuidadosa para instituirmos pequenas curas pela muitas encruzas existenciais da nossa vida? Me pergunto diariamente como esses/as profissionais estão sendo considerados? Estão sendo realmente ouvidos? Suas necessidades estão sendo debatidas? Penso que só essa falta de diálogo na raiz da instituição escola pode explicar a
falta de diálogo com as crianças e com os jovens e, por fim, conosco, o grupo de pais, os ‘patrocinadores’ tão temidos e, por isso mesmo, tão silenciados. É uma cascata de opressão e sinto muito mesmo constatar isso. Infelizmente, é o que estou vendo acontecer em algumas escolas nesse momento da nossa vida. Me pergunto para onde foram todas as teorias pedagógicas, sociológicas e psicológicas que estão nos livros lidos, nos fichamentos feitos, nas resenhas amaldiçoadas sobre os processos de ensino-aprendizagem? Aí não tem como não atualizar a bell hooks, aquela educadora negra e feminista maravilhosa que viveu a segregação racial nos Estados Unidos e que nos fala tão bem sobre as teorias mortas que estão a serviço do discurso colonizador. Ela nos lembra sobre a força dos nossos exercícios diários e reflexivos, repletos de vida concreta, o que ela chama de ‘teorizações’, e eu acrescento ‘teorizações vivas’. A pensadora, parceira de Paulo Freire, nos lembra que se as nossas teorias não nos curam elas não nos servem para nada além da divisão, além da apartação.
Fico olhando para a escola no sistema híbrido e penso, onde estão as teorias sobre Educação à distância? Cadê a lista de psicólogos lidos do século passado? A escola parece estar revelando sua maior falência como instituição educacional. Na minha observação, amostra pequena, aqui de casa, de alguns/mas amigos/as e de outros colegas da educação, as nossas crianças e jovens estão sentindo a corda arrebentar. São horas em frente a uma tela (será que ainda não entendemos que não funcionamos em telas?), é criança perdendo sua camada mais genuína de alegria e de criatividade, perdendo viço de vida, criando novas manias corporais porque o corpo não cala. Se tem uma camada da nossa existência que não cala é nosso corpo. No corpo despejamos tudo o que nossa mente não processa, tudo o que nossas emoções não carregam mais. Os psiquiatras e psicólogos estão aí para comprovarem.
Em pleno momento histórico de uma vivência de doença pandêmica, misteriosa e temida, a escola coloca o corpo em tela por quase 5 horas diárias. Um corpo contido, uma cadeira desconfortável e uma câmera que se exige ligada. Com que face esses meninos/as vão à escola? Que cara eu visto hoje? Somado a esse corpo contido, tem uma boca calada, a assimetria criada e ainda um excesso de tarefas a serem entregues para tal data, x horas, y dia. Pronto! Acabamos por conter a mente também. Se isso não é violência, eu realmente não sei do que estamos falando. E falo aqui porque desabafo. Ou melhor, me derramo nesse texto-açude porque não sei mais o que está acontecendo ao meu redor. Vejo as pessoas exaustas, as águas emocionais assolando as barragens da alma, as pautas progressistas começando a mofar no canto esquerdo do meu peito e minha voz se engasgando aqui de tanto silêncio.
Vamos conversar, gente? É só isso que proponho. Vamos perguntar para esses/as meninos/as: o que vocês estão sentindo? Qual atividade de português foi legal? Qual foi chata? Você tem sugestão? Você gosta das aulas de ciências? Por que? Você gostou quando ouviu música clássica na aula de artes enquanto fazia um desenho? Achou uma aula bacana no modelo online? Vamos conversar, também nós, pais e mães, vamos trocar para respirar e não nos sentirmos tão sozinhos. Vamos conversar, gestores/as? Mesmo que seja para dizer, ‘estamos aqui e não sabemos os caminhos’. Olha se esse desejo for só meu, eu volto para terapia e vou tentar compreender apenas em mim o que está havendo. Mas, sinceramente? Não penso ser esse o caso... Estamos vivendo uma pandemia paralela, que é a do silêncio, do isolamento e da desistência opressora. E só para partilhar, eu já estou voltando para terapia mesmo sabendo que não é um problema meu, pois quando trazemos para o individual e nos culpabilizamos, deixamos de construir nas coletividades (que é a vida!) as nossas existências como seres humanos! Já dizia Foucault sobre o significado ideológico dos hospitais, das escolas e das prisões.
Me pergunto se alguém está abordando o tema das perdas na vida dessas crianças, e falando sobre o medo da morte? Outro dia, entrei no quarto da minha filha e a professora estava cobrando a tarefa de um aluno, de um modo um tanto rude e ele respondeu: “tia, meu avô morreu ontem e minha mãe deixou eu faltar a aula”. O que dizer, o que fazer? Todos/as nós estamos vivendo isso nas nossas vidas pessoais e profissionais. Eu recebo pelo menos um e-mail por semana de aluno/a me contado sobre a morte de alguém muito próximo. Criei em minha sala de aula o que chamei de “Obituário poético”, a escrita de textos de despedida, ou a escolha de poema e canções em homenagem aos mortos, às suas histórias; uma ritualização do processo de dor.
Como nós, adultos, pais e professores/as, gestores/as, estamos lidando com as mortes, internações e medos que temos de encarar com todo o arsenal interno que já temos constituído? Acredito que poderíamos tratar disso nas escolas também, de verdade. Penso que deveríamos propor palestras, trocas, conversas, que deveríamos nos unir mais do que nunca para debatermos esses temas, em conversas qualificadas e emocionalmente curadoras. E, então, nós, pais, mães e responsáveis, poderíamos entrar com muita força, afinal, quantos somos com tantas vivências especiais e profissões diferenciadas... Penso que os projetos pedagógicos de todos os anos (da infinita tradição da escola slogan) deveriam dar margem, dar espaço agora para projetos realistas, pontuais e simples. Deveríamos arejar nossa pedagogia de projetos e abrir mão um pouco da pedagogia de evento.
Cadê o/a professor/a de Educação Física com uma carga horária ampliada agora nesses tempos? Nas escolas de meus filhos não há aulas síncronas de Educação Física, o que eu acho não só um absurdo e uma pena, mas eu sinto como uma mensagem subliminar do que é a educação neste momento. Ouvi um professor de educação física dizer que insistiu muito com a coordenação pedagógica para entrar em sala de aula, uma única vez, suas palavras foram “eu preciso ver meus alunos pelo menos uma vez”. Como assim, gente? Essas crianças e esses jovens não deveriam começar todas as aulas mexendo um pouco o corpo? Levantando da cadeira, fazendo uma automassagem, caretas, sons, espreguiçando, massageando o couro cabeludo, as orelhas, abrindo e fechando os olhos e soltando as mandíbulas? Para que mesmo nós educadores fizemos faculdade? Para que servem os conhecimentos, os estudos, os cursos, as infinitas lives, as reportagens sobre corpo e saúde, se não levamos isso para o dia a dia, para a educação (ou seja para o futuro), todos os dias? Eu penso que deveria ser no início de todas as aulas. De cada aula de 50 minutos. E trabalho bom seria aquele de tirar uma foto do Sol, de você no Sol, ao invés de tirar a foto do caderno com as respostas em letras ‘garranchos cansados’, onde consta escrito que a vitamina D faz bem pra saúde.
As crianças estão em casa. A escola entrou em todas as casas via computador, certo? Não. A escola continua lá, no reino tão tão distante, na terra onde o livro didático é soberano e agora, com o sistema híbrido, o quadro branco ou de giz também subiu de posto. Por que não vamos para a cozinha preparar uma receita em que unidades de medida ou frações das porções podem ser aprendidas na prática, ao invés de o/a professor/a de matemática continuar ensinando no bla bla bla (ou através e algum vídeo do youtube de qualidade duvidável). Por que a criança ou jovem não grava um vídeo ou escreve um relato de como foi fazer aquela receita. Para que remover da aula uma criança que estava fazendo o próprio café da manhã e saiu por cinco minutos para buscar o pão na cozinha? E por que, nessa mesma ocasião, faltando menos de um mês para terminar esse fatídico ano, dizer que ‘expulsou’ a criança e que vai ‘expulsar’ quem mais desligar a câmera? Alguém perguntou o que essa professora precisa para pensar um tratamento didático mais leve, mais tranquilo? Eu penso que há um deslocamento aí. Ou ela está recebendo essas orientações da gestão da escola? E por que tem de ser assim, ou melhor para que? Alguém foi escutado sobre aparecer nas câmeras? As crianças e jovens não podem escolher? Por que? Com base em que argumento? Como está a nota dessa criança (afinal, parece ser apenas o que interessa para este sistema)? Fico triste de ver isso. Fico realmente frustrada como educadora.
A alegria deveria ser chamada de volta para a escola da maneira como fosse possível, não é? Será que se chamarmos alguns palhaços incríveis para adentrar todos os portões das escolas com muita brincadeira, narizes de mil formas, pernas de pau, encantamentos, uma pitada da pedagogia do riso e do nonsense... será que acenderíamos uma luz? E eu não estou ironizando, fiz um curso de palhaçaria com o maravilhoso Ricardo Gadelha com sua Pedagogia do Riso para levar dinâmicas de alegria para minha sala de aula.
Axé e feliz ano novo!
Juliana Dias, mãe, mulher e professora
E você, o que pensa sobre esse assunto? Se tiver boas experiências ou sugestões para nossas escolas de 2021, por favor compartilhe com a gente nos comentários! Vamos construir isso juntes!
Essa foto linda é do ator, palhaço e educador Ricardo Gadelha, proponente da Pedagogia do Riso. Para saber mais, basta clicar na foto.
Professora, acabei de ler seu texto e o trouxe muito para a minha realidade como professora de crianças. Mas eu sou professora de escola pública e sei que a realidade da particular é bem mais rude. Por mim, só haveria escola pública no Brasil, como na maioria dos países que investem em educação. Eu sempre começo as minhas duas aulas síncronas semanais - de 1 hora cada - pedindo para nos espreguiçarmos [Minha turma só fica 2 horas semanais em frente ao computador de forma síncrona, eu escolhi assim e a direção não me forçou a nada]. Eu pergunto aos meus estudantes como eles estão e a conversa vai desde a cachorrinha que teve filhotes até um buraco novo que…
Nossa professora-mãe Juliana, que reflexão potente e profunda e necessária. Estou sem fôlego em busca de fôlego! Fôlego de vida... vida... falta vida em nosso cotidiano, a escola, a educação se tornou num ritual mecanizado e agora então, intensificado. Dei-me conta, lendo seu texto, de que como adultos não vivemos a graça e a leveza da vida e ainda impomos sobre nossas crianças, o nosso peso, a nosso ser/fazer robotizado. Para que mesmo que servem as escolas? Para que mesmo que nossas crianças precisam das escolas? O que é mesmo aprender? O que é passar anos e anos sentados em carteiras frente a um quadro ou a uma tela? Onde tem vida nisso? A vida, cadê a vida? Se não…